segunda-feira, outubro 11, 2004

Confesso que fiz greve (30 de Janeiro de 2004)

Com quase três décadas de oficial público, decidi, há dias, aderir, pela primeira vez, a uma greve, sem deixar de ser insidicalizável e de direita. Dei a aulinha, escrevi no sumário que cumpria um serviço mínimo, para não defraudar os alunos, mas formalizei a minha situação de grevista, ajudando a reduzir o défice e assumindo publicamente a minha colocação na lista negra, que terá sido solicitada a certas escolas por fiéis burocratas da nossa decadência.

É evidente que, com esta atitude, não apoiei a recente proclamação de Mário Soares, para quem «o espírito do 25 de Abril está ser posto em causa por parte de forças políticas de direita, algumas no poder, o que não pode acontecer”. Nem sequer o fiz com esperança de ouvir, do Primeiro-Ministro, que “o Executivo está a trabalhar no sentido de aumentar os salários dos funcionários públicos em 2005”. Já não vou em eleitoralismos...

Com efeito, inclino-me mais a subscrever o Presidente Sampaio, para quem Portugal «precisava era de um Lord Hutton», e a reconhecer o irreal da situação: «imagine-se aqui o primeiro-ministro a abrir um inquérito, nomear um juiz para o realizar e definir um procedimento a seguir». Mas, com isto, não adiro à doutrina de Francisco Louçã, sobre a existência de ministros “inimputáveis”, porque também não sei distinguir essa categoria das “garotices”. Apenas sei que a queda deste sistema político, antes de o ser, já o é. Há muito lodo perto do Cais das Colunas.

O tal “sistema político-partidário” constitui um modelo de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole.

Discordo frontalmente do dr. Mário Soares, o nosso velho professor de democracia pluralista, quando este confunde aquilo a que, há tempos, deu o nome de “tumores” com “forças políticas de direita”. Porque se tal fosse verdade, eu que sempre me disse de direita, teria que passar para a extrema-esquerda.

Até porque, “antes de eu ser de esquerda”, ou de direita, “já era da Pátria. A Pátria é a minha política”, como dizia Passos Manuel, em carta dirigida a José da Silva Carvalho, em Novembro de 1836.

Logo, ser radicalmente democrata, isto é, fazer a defesa moral da liberdade individual contra a tirania do Estado, implica reconhecer que “se o poder enlouquece, o poder absoluto enlouquece absolutamente”, como nos ensinou Alain.

Prefiro concordar com outra recente intervenção pública do mesmo Mário Soares, segundo o qual o que, agora, nos falta é o sentido da honra e um adequado norte de patriotismo. Por isso é que me sentiria menos colectivamente inimputável, se pudesse ouvir o povão exigir do parlamento que nos fizesse aprovar uma lei, segundo a qual as conclusões dos trabalhos das inspecções estaduais não mais ficariam dependentes do arbítrio do despacho de arquivamento de um qualquer figurão ministerial, dado que esses segredos de gaveta não podem estar imunes à publicidade da justiça, nomeadamente à remessa de tais papéis para o Ministério Público.

O que nos falta é uma adequada cultura de Estado de Direito, capaz de eliminar, pela raiz, os “tumores” dos micro-autoritarismos ministeriais, secretariais e sub-estatais, onde inúmeros bonzos, ministeriais e autárquicos, incluindo presidenciáveis, continuam o absolutismo, dizendo que tem valor de lei tudo aquilo quanto vociferam, sob o nome de ordens, e não estando dependentes da ordem geral e abstracta que dão aos subordinados. O que faz falta, não é animar a malta, é um pedacinho de patriotismo científico.