segunda-feira, outubro 11, 2004

O governo dos espertos (4 de Janeiro de 2004)

Ano novo sem vida velha, só para quem sabe que a esperança não rima com medo. Importa, pois, mudar. Crescer. Para cima e para dentro. Importa regenerar, para vivermos como pensamos. Sermos liberdadeiros, para nascermos, de novo, todos os dias.
Começando com estas mensagens que enviei aos mais próximos amigos, durante esta chamada época de festas, regresso à quinzenal intervenção jornalística, dizendo que julgo saber analisar laboratorialmente a vontade de poder dos que dizem querer "salvar a cidade", apenas a pensar na paróquia, no quintal, na casa, na bolsa, na barriguinha, na inveja ou nas vaidades. E que talvez entenda o libidinoso de muitas ânsias "dominandi", o dogmatismo de acaciana pacotilha, bem como o indisfarçado desejo quanto à imposição de um paradigma único, que elimine as dúvidas do pensamento e nos dilua na corrente dos que pensam vencer na história.

Reconheço, com efeito, que vivemos em autêntico regime do "governo dos espertos", para utilizar a qualificação dada por Hannah Arendt ao modelo austro-húngaro e otomano, onde os burocratas destes regimes imperiais, ao contrário dos agentes do totalitarismo, apenas exerciam uma opressão externa, deixando intacta a vida interior e gerando uma espécie de "domínio perpétuo do acaso", na qual o agente imperial tinha a ilusão da acção permanente, não se notando a vivência dos princípios gerais de direito por detrás dos decretos.

Ora esta lógica decretina, também assumida pelo salazarismo e pelos salazarentos permanecentes, pouco tem a ver com a essência igualitária e justicialista da democracia representativa e pluralista, a qual não admite excepções para qualquer corporacionismo que tente restaurar um foro especial ou um sistema privativo de privilégios, imunidades e isenções.

Volto assim ao aqui e agora. Sem pensar em Moderna e em Minerva. Na Casa Pia ou na lista dos pedófilos prescritos, do PSD, do PP e do PS. Porque mesmo quando desaparecem os sinais exteriores e institucionais de repressão, dos autoritarismos e totalitarismos, pode manter-se o subsistema de medo que infra-estruturalmente mantinha aqueles aparelhos e sustenta alguns dos figurões florentinos de outrora, esses que continuam a florear, de forma revisionista, em lugares oficiais de hoje.

A culpa da escravatura, como dizia Beaumarchais não cabe apenas aos tiranos, mas também aos que não promovem a revolta dos escravos, só porque têm "medo da liberdade", segundo Erich Fromm. A liberdade não é apenas vítima daqueles que a atacam, mas também daqueles que a não defendem.

O tirano é sempre um produto da "servitude volontaire", como dizia Étienne La Boétie, tem apenas o poder que se lhe dá, esse poder que vem da "volonté de servire" das multidões solitárias. "N’ayez pas peur!"

Aliás, nem todos os "antifascistas" são democratas, tal como nem todos os ditos democratas são "antitotalitários". Porque, como dizia o mesmo Erich Fromm, "o poder não é produto da força, mas filho bastardo da fraqueza".

Não devemos aceitar a humilhante mediocracia do escravo, bem como que nos coloquem na categoria dos tolerados, agradecendo aos vencedores a mercê de não nos terem assassinado. Aliás, os mesmos, sempre dependentes do equilíbrio mecanicista do situacionismo, nem sequer admitem a hipótese de alguém cultivar a insolência do excêntrico, chamando extremistas a todos quantos, muito regeneradoramente, pela irreverência, procuram o concêntrico, quando exigem a necessária eliminação das raízes do apodrecimento situacionista.
É por isso que o direito se confunde crescentemente com um legalismo frouxo e hipócrita. Que a justiça é medida pela espada retaliadora da vingança do vencedor. Tal como o sentido cívico tende a degradar-se pela contabilidade hipócrita dos que são condecorados só porque assinaram o livro de ponto da obediência conformista.
Esses pretensos moderados que, vindos da extrema-esquerda ou dos bancos do poder salazarista, se assumem como o paradigma do bom europeísta e do excelente aliado do amigo do norte-americano, são, por vezes, capazes de desencadearem as diabólicas tenazes que desgrenham as instituições, quando estas não lhes fazem os jeitos, usando golpadas assentes na mais mísera das demagogias, actuações em que são pródigos pretensos marechais do espírito, mantidos pelo decretino da tentação burocrática e que ainda têm a desfaçatez de continuarem a dedilhar a lira da modernidade, quando não passam de simples repetição de outros tantos "adesivos" e "viracasacas".

Apenas dura aquele que obedece a princípios, e não aquele que cantarola princípios, pensando que tudo é uma questão de semântica. Apenas consegue superar a conjuntura quem se entrega a uma corrente de pensamento e que, sem fazer o discurso da caricatura institucionalista é efectivamente institucional, dado que procura servir uma ideia de obra e integrar-se numa comunhão com outros, companheiros ou camaradas, que partilham as mesmas crenças e que obedecem às mesmas regras do jogo.