segunda-feira, outubro 11, 2004

Da Arte de Furtar à Reforma Universitária (4 de Novembro de 2003)

Da Arte de Furtar à reforma universitária

Por José Adelino Maltez

Há tempos, quando arrumava a minha biblioteca afectiva, reencontrei a antiga, mas não antiquada Arte de Furtar, obra publicada anonimamente, em 1652, com o subtítulo Espelho de Enganos, Teatro de Verdades, Mostrador de Horas Minguadas, Gazua Geral dos Reinos de Portugal.
Confirmei que aí se encontram palavras que ainda hoje nos permitem compreender os modelos mentais de todos os situacionismos, nomeadamente os barrosismos, os portismos e os sampaísmos.
Com efeito, "a Senhora Dona Política", sempre foi a tal filha da "Senhora Razão de Estado" e do "Senhor Amor Próprio". Ambos "dotaram‑na de sagacidade hereditária e de modéstia postiça. Criou‑se nas cortes dos grandes Príncipes, embrulhou‑os a todos".
Se, outrora, "teve por aios a Maquiavel, Pelágio, Calvino, Lutero e outros doutores dessa qualidade, com cuja doutrina se fez tão viciosa que dela nasceram todas as seitas e heresias que hoje abrasam o mundo", eis que, hoje, novos aios, com novos nomes, perpetuam a ditadura do "statu quo", do "politicamente correcto", do "culturalmente correcto", do "comunicacionalmente correcto".
Assim, todos podemos concluir que "todos falam de política, muitos compõem livros dela e no cabo nenhum a viu, nem sabe de que cor é". Ora, "a primeira máxima de toda a política do mundo que todos os seus preceitos encerram em dois, como temos dito, o bom para mim e o mau para vós".
Ao aceitar a regra de "viva quem vence. E vence quem mais pode, e quem mais pode tenha tudo por seu, porque tudo se lhe rende", neste ponto,"errou o norte totalmente, porque tratou só do temporal sem pôr a mira no eterno"
Descendo à realidade, apenas direi que, neste país quase imaginário, entre as muitas cabalas que nos infra-governam, começa a emergir um esboço ramificativo que semeia a intriga inquisitorial entre os fazedores de génios intelectuais, misturando invocações catolicamente santificadas com luteranas imprecações, para que se cacem subsídios e se semeiem padrinhos.
E assim se vai transformando a influência num autêntico polvo de ataques mentais, onde a estratégia do leninismo de extrema-direita se tem casado com as memórias estalinistas de alguns dos grandes mestres-pensadores do nosso tempo lusitano.
Quem, no lugar próprio e com escritos assinados e não publicitados, contestar directamente quem se senta no cadeirão mais alto, corre o risco de ser objecto das facadas dos pobres jagunços, que, assim, pagam a posta recebida, a bolsa conquistada e a pelingrafia publicada.
Estes idiotas úteis que se julgam formadores de opinião são particularmente virulentos para quem ameaça causar estragos na paisagem ideológica ou político-partidária que os mestres quiseram cenarizar, para melhor exercerem o controlo terrorista.
Aproveitando os interstícios do poder supremo, há assim muitos que nos querem assim infra-governar, mobilizando quem veio da extrema-esquerda e quem veio da extrema-direita e quer estar no centro do poder político-mediático, político-judicial, político-governamental, político-bancário, político-sacrista e político-editorial. Aliás, têm conseguido!

Juntando vários fundamentalistas, oriundos de fundamentalismos não-portugueses, não perdoam a quem, sendo convidado, não quis servir a seita, batendo nas portas com cartas escritas, preto no branco, nome no nome, adjectivamente substantivado em factos.

Na primeira janela de oportunidade que lhes apareça, os mandantes logo espicaçam alguns idiotas úteis, para estes elaborarem uma masturbação de adjectivos amedrontadores, enquanto, pelo caminho, vão sendo saneados todos os que lhes estavam dependentes e que apenas tinham vagas relações de amizade com o diabo a abater pelo pseudo-exorcismo exterminador.

Esta gente, que beneficiou com o salazarismo e que nada perdeu com o abrilismo, consegue que o mundo das orgias niilistas tenha aí um representante. Que o universo dos "tradutores em calão" da nova modernidade intelectual aí se sinta representado. Até porque os financiamentos parecem garantidos por quem vai criando organismos e organismos, conferências e conferências, leninismos e leninismos, como se precisássemos de um novo Quirino de Jesus, de um novo Alfredo Pimenta, de um novo padre Manuel Fernandes Santana, só porque abundam tipos com a sensibilidade de António Botto.

Até acrescentaremos que o contribuinte dá dinheiro demais ao chamado ensino superior, público, privado e concordatário, atendendo àquilo que tal conglomerado produz. Se não há universidades a mais, há um exagero de corporativismos que se recobrem com o título de autonomia, nome que dão a muitos feudalismos, assentes em manipulação eleitoral, caça ao subsídio e protecção dos incapazes.

Primeiro, porque os dirigentes ditos eleitos acabam por ser o produto de uma barganha, onde os interesses dos estudantes profissionais do associativismo é terem menos aulas, os dos funcionários é terem mais férias e os dos professores directivos é dividirem para reinarem. Segundo, porque haver apenas autonomia da despesa é continuar o regabofe onde quem gasta não paga. Terceiro, porque tudo é movido pelo carreirismo, dado que não há efectivos concursos nacionais para professores, estímulo à mobilidade, nem medição da qualidade que ultrapasse a fantochada da avaliação.

Querem reformar, acabem com os profissionais da reforma! Façam como na Irlanda e metam todos os estabelecimentos de ensino superior público dentro do mesmo sistema. Façam como na Itália, na Espanha e na França e exijam concursos efectivamente nacionais para a carreira dos professores. Façam como nos Estados Unidos da América e no Reino Unido e acabem com a estúpida distinção entre público e privado, criando "corporations", onde mesmo as faculdades públicas possam ter como sócios entidades profissionais e antigos alunos que controlem o forrobodó das eleições internas e das estúpidas ordens da hierarquia ministerial.

Não é privatizando o público e publicizando o privado que pode resolver-se o problema. O chamado interesse público pode ser exercido por entidades associativas, como são as ordens profissionais, em quem o Estado delega competências. Assim se aproximaria o ensino da vida prática e teórica, assim se poriam os estabelecimentos de ensino dito superior ao serviço da comunidade.

Portugal continua a precisar de indisciplinadores que nos façam regressar ao bom-senso.